Jorge Portugal foi nomeado como o secretário de Cultura do governo de Rui Costa
Por: Davi Lemos
O professor Jorge Portugal, 58, novo secretário estadual da Cultura,
aponta as dificuldades orçamentárias como o principal empecilho no
início da gestão. Ele assumiu a pasta na última terça-feira, quando
concedeu esta entrevista, no Palácio Rio Branco. Portugal, que se
notabilizou como educador, poeta e compositor, fala da formação em Santo
Amaro da Purificação, cidade que o "aprontou", como prefere dizer.
Cidade onde também participa do bicentenário "Senado", um grupo cujos
integrantes se reúnem diariamente em "sessões" realizadas nas escadarias
da Igreja da Purificação.
Quais são as intenções iniciais à frente da secretaria? E de que forma o senhor vê a cultura?
Cultura talvez seja o termo que mais suscita debate, polêmica e
discussões acaloradas. Mas eu uso sempre uma explicação que meu saudoso e
querido mestre Vivaldo da Costa Lima dava quando eu estudei psicologia.
Eu fui aluno dele em antropologia. Ele dizia: "Cultura é tudo o que o
homem faz além daquilo que a natureza dá". Um coqueiro, por exemplo, é
natureza, não é cultura, mas a forma de beber a água de coco já é
cultura. E a Bahia é sinônimo disso.
E como o senhor pretende trabalhar à frente da secretaria?
Eu sento aqui representando um governo de continuidade, não de ruptura.
Já havia políticas culturais implementadas, e a todas elas o nosso
desejo é dar continuidade, ampliando, aprofundando. O processo de
interiorização é uma grande novidade neste último decênio na Bahia.
Observando aqui o perfil do senhor [distribuído pela assessoria
de comunicação da Secult], o senhor ressalta não só a formação
acadêmica, mas as experiências de vida desde a infância.
Eu nasci e vivi até os meus 16 anos em Santo Amaro da Purificação.
Imagine: morando cinco casas depois da família de Caetano, Dona Canô,
todo mundo. Até os dez anos, eu vivi no Mucumbi, que era uma fazenda de
cana, fazenda de cem tarefas que meu pai tinha. Eu cresci vendo os
cortadores de cana, as pessoas que trabalhavam ali naquela lavoura,
trabalhando e cantando. Cantando os sambas de rodas, as chulas. Cortando
a cana e, neste ritmo, vinha o samba. E eu vendo isso, ouvindo isso,
participando, absorvendo. Mais tarde eu começo a me apaixonar pela
novena de Santo Amaro, que é uma das peças de música sacra mais belas
que você pode conhecer. Então a minha formação vem dessas duas vertentes
musicais: a música sacra barroca e do samba de roda. Santo Amaro é quem
me aprontou.
O senhor também ressalta seus professores.
Eu fui formado ali por grandes mestres. A professora Luzáurea Pinto,
que era diretora do Ginásio Teodoro Sampaio, em que estudei, dizia o
seguinte: "Aqui neste ginásio matemática tem tanto valor quanto teatro.
Ciência é igual a música". Então, eu já cresci e já estudei dentro desse
mundo.
O senhor falou de Santo Amaro. Falando um pouco agora das
festas populares, a impressão é que já não têm a mesma pujança que
tiveram até a década de 1980.
Com certeza. Eu ainda alcancei um tempo em que, quando chegava o
momento das festas em Santo Amaro, de 24 de janeiro a 2 de fevereiro, as
pessoas já vinham se antecipando em mandar fazer as peças de roupa para
poderem ir à novena.
Esta perda de pertença é pelo fato de as pessoas estarem muito mais isoladas em um ambiente tecnológico? Isso influencia?
Influencia muito. Há dez anos, eu dava aula em um cursinho
pré-vestibular e dizia o seguinte: "Eu tenho medo de que chegue um dia
em que as pessoas de uma mesma família estejam cada uma em seu cômodo se
comunicando pelo telefone celular". As pessoas davam risada, mas
estamos vivendo esse tempo. Esse sentido de comunidade vem se perdendo.
E o que resistiu a isso em Santo Amaro?
Uma instituição chamada "Senado", bicentenária, que é uma reunião que
se dá entre pessoas, na escadaria da Igreja da Purificação, que começa
por volta de cinco da tarde e vai até uma ou duas horas da manhã, todo
santo dia. Minha comadre Canô (Veloso) me dizia que o pai dela tomava
sopa correndo para não perder a segunda sessão do Senado.
Ainda há as sessões?
Claro. A última sessão era feita pelos notívagos da cidade. Os que são
mais idosos hoje participam da primeira sessão, porque vão para casa,
vão dormir [mais cedo]. Aí vem o pessoal de meia idade, que pega umas
oito horas e vai até dez, onze. E depois vêm os notívagos que, nesta
época, aparecem na cidade aos montes. Está lá. Existe. Quando eu fui
indicado para a secretaria, eu fui lá em Santo Amaro. Aí tomei logo uma
descompostura: "Você está pensando que secretário é mais que senador?
Você é senador e ultimamente tem se ausentado. Não vamos abonar suas
faltas".
Há um processo para a aceitação?
Há. Não há quem chegue a Santo Amaro que não saiba. Não há candidato a
prefeito em Santo Amaro que não se aproxime para poder saber, fazer a
sondagem. Fala-se de tudo, desde o último ato de (Barack) Obama, desde a
última descoberta da física, até, principalmente, o principal assunto
da pauta: a vida alheia.
Voltando à secretaria, o principal empecilho para a gestão é o orçamento?
É, principalmente. Perguntaram-me: "O que você vislumbra como primeira
grande dificuldade?". É o orçamento, porque é preciso dar conta de um
estado-país. Essa vai ser uma das principais lutas minhas aqui.
Ano passado, o orçamento da cultura foi de 0,7% do total do
estado. Há uma lei que pode ser aprovada que prevê dotação de 1,5% do
total do orçamento.
Eu já estou arregaçando as mangas para bater na porta dos parlamentares para fazer isso correr.
Há também queixas a respeito dos editais que não foram pagos. Isso será conversado?
Sim. E vamos ampliar mais ainda o diálogo. Mas estas contingências são
justamente por conta das imposições da realidade. Claro que, como as
pessoas que fazem a cultura têm um poder de fogo muito grande, sobretudo
junto à mídia, o barulho é maior, mas o contingenciamento ocorre para
todos.
Ouvi o senhor dizer que deseja uma relação maior entre cultura e educação. Como o senhor pensa essa relação?
Ela já existe. Este casamento eu não vou fazer, este casamento já está
em mim desde sempre. Esse casamento já existe na realidade. Posso depois
passar o número de ações que foram feitas durante as gestões de Márcio
(Meireles) e Albino (Rubim). O que eu vou fazer é multiplicar isso.
Mas a arte ainda é vista como algo supérfluo. Como mudar esta percepção?
A gente tem a educação para isso. Volto à professora Luzáurea. Quando
você estuda em um colégio em que a diretora diz que matemática pesa
tanto quanto teatro, que você estar no coral é tão importante quanto
assistir à aula de ciências, você cresce sem separar as duas coisas. Já
imaginou se a gente pega essa rede de educação poderosa, poderosíssima,
com seus gestores, diretores, coordenadores e tudo o mais, e injeta esse
amor pela cultura? Isso aqui pega fogo.
Falando sobre patrimônio, cito um exemplo. Quando se passa pela
avenida Contorno, em Salvador, veem-se as ruínas. A impressão que dá é
que o patrimônio é descartável.
Eu sofri isso em minha própria cidade. Eu vi Santo Amaro se transformar
de tal maneira - Santo Amaro perdeu, praticamente, toda arquitetura
colonial. Porque estava muito perto de Mataripe, e sabe o que aconteceu?
As pessoas chegavam lá, compravam casas e diziam: "Isto é uma
velharia", com o bolso cheio de dinheiro. "Isso aqui é uma velharia, eu
vou botar azulejo aqui porque não preciso pintar mais". E a cidade
acabou se transformando, para a nossa tristeza. Você vê a relação que as
pessoas têm com o patrimônio, mas, conversando com Carlos Amorim
[superintendente do Iphan na Bahia], ele me deu uma grande notícia:
"Santo Amaro está no PAC das Cidades Históricas e você não vai
conhecê-la daqui a mais dois ou três anos".
Mas é importante que estes imóveis tenham vida. No Pelourinho deixou-se de dar vida às casas, que viraram centros comerciais.
É um "shoppão" que, chega em determinados horários e em determinadas
épocas, viram verdadeiro deserto. Eu, por exemplo, adoraria morar no
Pelourinho.
Houve polêmica após a nomeação do senhor. O poeta e acadêmico
Luis Cajazeira Ramos disse que o senhor teria se referido à Academia de
Letras da Bahia como uma instituição "carcomida". O senhor publicou um
artigo em A TARDE explicando o que ocorreu, mas depois Joca Teixeira
Gomes respondeu e voltou com a mesma polêmica. Qual é a instituição
"carcomida"?
Eu nem vi o artigo de Joca, que foi meu colega, sempre tive com ele uma
relação maravilhosa. Soube até que no artigo ele disse que teve
desavenças comigo. E eu disse: "Qual, rapaz, que desavença?". Vou repor a
verdade. Ruy Espinheira [Filho] escreveu um artigo, condenando a
política das cotas. E o professor Penildon Silva respondeu a Ruy,
mostrando que era uma política inclusiva e etc. Eu entrei na história e
escrevi duas linhas. A "academia carcomida" ali era uma certa
universidade que não queria se abrir às ações afirmativas, que queria se
manter elitista como sempre foi. Para você, por exemplo, querer saber
quem era o aluno da Ufba bastava olhar o pátio, o estacionamento. Então,
a "academia carcomida", ali, era a universidade elitista, e jamais a
Academia de Letras.